domingo, 17 de julho de 2011

DUAS ALICATADAS E, "CRAU"



     Dia desses estava eu, distanciado do tempo presente e sorvendo tranquila e sossegadamente minhas seguidas doses de Chivas 12, o meu predileto, em um bar qualquer da cidade, numa tarde qualquer. Onde uisque é artigo de luxo, mas levei o meu para prevenir. Estava a divagar, deixando o pensamento correr solto na medida em que apreciava com deleite o sabor acridoce do scoth.




     Era um bar de periferia, a bem da verdade. Mas o silêncio era inspirador. Recusei até mesmo que ligassem o som sabendo que, se concordasse, teria que poluir meus ouvidos com as baboseiras que hoje em dia crassam pelo Brasil a fora. – Se chegar algum freguês e ele pedir, pode atender – contemporizei, torcendo para não aparecer ninguém.

     Sorvi mais uma dose, com a delicadeza devida para não perder a suvidade do malte que desce meticulosamente goela abaixo. Trago mas gostoso não há, certamente, pelo menos para mim.

     Estava eu em minhas divagações, quando, metros adiante, visualizo dois operários, devidamente paramentados para o perigo que a função exige. Principalmente luvas apropriadas. Fico a observar, sem muito interesse, a movimentação da dupla que se dirige para determinado endereço. Um deles bate, se identifica e, certamente, explica os motivos da inusitada visita. Quem atende, uma mulher, também argumenta alguma coisa (desconheço o teor já que não faço leitura labial). O papo é rápido, de poucos minutos.
Em seguida os dois operários seguem direto para um poste, ajeitam uma escada, um deles sobe e “crau”, duas boas alicatadas e estava cortado o fornecimento de energia para aquela casa.

     Sorvo mais um gole. Agora, a curiosidade já me domina por inteiro. É que o lá de cima fez um serviço mais completo: cortou as duas emendas, baixou a fiação e repetiu o mesmo método, também, na cumieira da casa pela saída do relógio, anulando por completo qualquer possibilidade de ligação clandestina. “Para evitar um possível gato”, imaginei. 

     Cumprida a missão, os dois zelosos operários entram na viatura e se mandam. Talvez em busca de novos endereços inadimplentes para, “crau”.     

     Fiquei a observar aquela casa, novamente de portas fechadas, e me bateu uma angústia interior. O que os dois trabalhadores deixaram para trás – eles estavam somente cumprindo ordens – não foi apenas uma família às escuras. 

     Deixaram para trás uma família exposta a humilhação, a maledicência dos vizinhos, a execração pública. 

     – Por que não se corta energia no absoluto anonimato, tal qual como se suspende serviço de telefone quando não pago e que nenhum vizinho fica sabendo? Por que tem de se submeter o consumidor inadimplente a este tipo de constrangimento? Não caberia aí uma ação por danos morais?   

     O que aqueles homens fizeram, muito embora cumprindo ordens e o papel deles enquanto empregados, foi abrir questionamento – mas para quem questionar? - sobre em que situação de miséria e de exclusão social deve viver o povo ali daquele endereço. O que os levou a deixarem acumular sabe-se lá quantos talões da conta de luz? Irresponsabilidade do chefe de família? Ou é uma família sem chefe? Um chefe alcóolatra? Talvez ali viva uma dessas muitas mulheres largadas, com “reca” de filhos pra criar? Algum filho metido com as drogas, que não ajuda em nada no sustento dos parentes? Talvez uma filha envolvida na prostituição, pomposamente intitulada de “garota de programa”?

     Por que? Por que? Por que?

     Situações que só desequilibram a boa harmonia familiar.

     De repente sai do endereço uma garota, adolescente ainda, talvez beirando os 16 anos. Cabelo “emaranhado”, cara sonolenta, rebolado de quem não quer querendo; “cara de quenga”, como diria uma amiga minha do alto da sua sapiência crítica. Imaginei: “sem ventilador, foi expulsa pelo calor”.

     Não deu outra. A dita cuja seguiu direto para o bar, onde estava bem ventilado, se espreguiçou languidamente, amesendou e começou um rosário de xingamentos, dirigidos não sei a quem. Acabou justificando – sem que ninguém perguntasse – que tudo era culpa dos antigos inquilinos, que dali mudaram deixando aquele “abacaxi” pra mãe dela resolver. – Será mesmo? - Me deu vontade de perguntar pelo pai, mas deixei pra lá.


     Melhor voltar ao meu Chivas porque, a bem da verdade, também tenho os meus muitos problemas para absorver o meu
tempo.

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